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A rua da estrada de Álvaro Domingues retrata, em 220 fotos, organizadas por temas e com textos ilustrativos, as diferentes formas da paisagem e do edificado, permanente e efémero, que encontramos ao longo das nossas estradas. O carácter “urbano”, doméstico e mercantil destas vias de ligação e de acesso a que chamamos estradas, tem aspectos semelhantes ao das ruas das cidades e das vilas que conhecemos. Daí a designação de “rua da estrada” a todo um cardápio de usos, conflitos e soluções, mais ou menos engenhosas.
     Citando o autor: “Num país histórica e profundamente deficitário em infra-estruturação, que só teve auto-estradas e vias rápidas na década de noventa, era de esperar que a dinâmica de crescimento do pós-guerra tivesse que produzir edificação algures. As estradas e o que nelas havia (electricidade e telefone, quando calhava) eram o suporte mínimo dessa edificação com acesso garantido [...] Com a banalização e a democratização do automóvel, ficou garantida a fluidez desta urbanização linear onde tudo se mistura: casas, cafés, restaurantes, lojas, serviços, fábricas” (p.14).
     A leitura atenta deste livro mostra, porém, que o tema da distinção entre rua e estrada tem um significado que vai muito para além da variedade de soluções e engenhos. Vale a pena ir buscar o Decreto sobre a construção, conservação e polícia das estradas e abertura de ruas de 31 de Dezembro de 1864  que foi percursor na definição do papel do Estado e dos particulares no ordenamento do território e que refere no seu preâmbulo: “A viação pública não compreende só as estradas tais, distritos e municípios [...], compreende também as ruas no interior das povoações. Estas ruas são públicas, destinadas ao uso de todos, sem excepção de pessoa, ninguém pode delas exclusivamente dispor e gozar, exactamente como acontece nas estradas de todas as ordens e nos caminhos-de-ferro. O facto de serem as estradas situadas num município, num distrito, num país, em nenhum tempo foi razão justa para proibir que por elas livremente transitassem os estranhos a esse município, distrito ou nação. O mesmo sucede nas ruas. E mais adiante:A decoração das cidades, o livre-trânsito, a comodidade e segurança dos habitantes, a salubridade pública e a conveniência de evitar a aglomeração da população, reclamavam medidas que o Governo forçosamente devia propor a Vossa Majestade. Sem as restrições que estas medidas impõem aos proprietários seria impossível alcançar aquelas vantagens e é incontestável o direito que o Estado tem para exigir dos indivíduos particulares razoáveis sacrifícios ao bem de todos.
     Para o planeamento do território, a distinção entre rua e estrada tem nos dias de hoje uma dimensão ainda mais dinâmica que lhe é dada pela complexidade da composição das sociedades e por condições de mobilidade e de conectividade garantidas por sistemas e infra-estruturas não previstas ou imaginadas nos tempos de Sua Majestade. Esta distinção é ilustrada pela importância da “estrada” como infra-estrutura, eixo e componente das “redes” – de serviços, de actividades e de contactos – a que nos ligamos e em que funcionamos como cidadãos e utentes das cidades e dos territórios, versus os “lugares” de vizinhanças, do dia-a-dia, dos espaços públicos, de trocas e de interacção humana, das cidades como “urbe”, mesmo que substituídos por espaços cada vez mais virtuais.
     Esta dualidade, da utilização da infra-estrutura viária como rua ou como estrada, está patente nas imagens do livro e nos conflitos que o ordenamento do território procura regular, de forma a garantir, ao mesmo tempo, condições de mobilidade entre lugares (leia-se também cidades) e de direito ao acesso, privacidade e fruição desses mesmos lugares.
     O que as imagens e a leitura dos textos ensinam, também, é que, com mais ou menos normativa e regulação, os resultados representam formas de compatibilização entre interesses e usos, assumindo a dualidade mas também um sentido de complementaridade com evidentes economias.
     Esta visão, da complementaridade e da compatibilidade, será a da modernidade e da “sustentabilidade” em contraponto à perspectiva sectorial de construção de variantes e sistemas viários, tão queridas de muitos autarcas, paralelos às estruturas e eixos existentes, duplicando “estradas” sem viabilizar “lugares” e comprometendo, sem comprovadas vantagens e benefícios, a qualidade das paisagens e a ecologia dos territórios.
     Neste sentido, vale a pena lembrar a lição de François Ascher: “O urbanismo interpela os políticos. Exige que tenham ambições e projectos. Porém, implica também a arte do compromisso porque cada situação, cada aposta urbana, necessita de ter em conta interesses variados e a construção de acordos e de maiorias ad hoc.1
     As imagens deste livro são uma expressão da arte do compromisso. Saber lê-las e interpretá-las é uma lição para o ordenamento do território, mesmo percebendo que muitos dos exemplos são complicados em termos éticos e estéticos e de que há áreas em que não pode haver concessões, nomeadamente quando se trata da prevenção de riscos, do funcionamento das estruturas ecológicas e da defesa e preservação dos valores patrimoniais.|

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1 François Ascher, Novos princípios do urbanismo seguido de Novos compromissos urbanos. Lisboa : Livros Horizonte, 2010.

 

 


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